14 junho 2007

NO PRINCÍPIO...



...era o Verbo. É assim que começa um grande livro religioso (S.João, 1:1). Neste contexto, "verbo" significa "algo verbal" ou "Palavra".

A Palavra é extremamente poderosa. Mal utilizada,pode (infelizmente) degradar, destruir, corromper, deitar abaixo. Quando proferida no que acredito ser a sua intenção inicial, serve para estimular, apoiar, confortar, animar.

Não é por acaso que em Timor os Contadores são chamados de Lia na'in (mestres de palavras, em linguagem tetum).

A minha ligação principal com a Palavra é através do Conto. Pode dizer-se que fui nutrido na minha infância por uma dieta de contos tradicionais. Ao colo da minha bisavó e da minha avó, eu ouvia horas a fio os velhos contos, sem me cansar das frases repetidas uma e outra vez, até adormecer...

Assim,foram essas sementes, deitadas na terra fértil da minha mente infantil no passado que deram frutos agora, no presente, frutificando em Contos, e é sem dúvida por isso que eu sou um Contador.

É também por isso que eu pretendo que este espaço que hoje abro seja um forum para assuntos relacionados com a problemática dos contos. Seja benvindo quem, como eu, os amar e quiser falar sobre isso.

Por isso, entre, sente-se, fique à vontade, diga de sua justiça. Toda a partilha de experiências será bem acolhida, grande ou pequena, experiente ou não, recente ou antiga...

Para terminar, quero aqui deixar a minha homenagem á minha bisavó (Joaquina) e à minha avó (Laurinda); e que homenagem melhor lhes poderia deixar um Contador senão ... uma história?!
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A palavra é muito perigosa, inclusivé para dizer asneiras (Maurício Leite, Beja, 2004)

A PALAVRA

Há muito tempo vivia numa aldeia um homem conhecido (mas nem sempre apreciado)pelas suas histórias. Nessa altura (como ainda hoje) havia quem conotasse "histórias" com "mentiras", como se a vida deixasse de ser séria só por nos rirmos...

Conta-se que esse homem, passeando ao longo duma praia deserta, encontrou à beira de água uma caveira humana branca e descarnada. Filosofando, exclamou:

- Ah, caveira, se pudesses falar decerto me dirias o que te trouxe aqui...

A caveira entreabriu as suas maxilas mortas e respondeu numa voz que lembrava o esfregar de folhas secas:

- A Palavra.

Espantado e aterrorizado, o homem correu para a sua aldeia e contou a todos o que tinha acontecido. Quando isto chegou ao conhecimento do chefe da aldeia, e porque o homem era conhecido por ser um indivíduo diferente, complicado, difícil de entender para aqueles espíritos simples e práticos até ao exagero, este encolerizou-se e disse:

- Está bem, agora chega! Vamos todos seguir-te até á praia e, se não for verdade o que contaste, mando cortar-te a cabeça!

E lá foram. Chegados ao pé da caveira, o homem perguntou novamente porque estava ela ali, e a caveira conservou-se calada.

- Caveira, diz alguma coisa.

Nada.

Depois de um quarto de hora de tentativas, o chefe ficou tão zangado com o que considerava um insulto à sua inteligência, que lhe mandou cortar a cabeça. Esta caiu ao chão e foi levada pelas ondas.

Dias depois o mar trouxe-a novamente àquela praia, já tão descarnada pelos peixes e caranguejos como a outra. Rebola para cá, rebola para lá e as duas encontraram-se frente a frente. E o velho crânio pergunta ao outro:

- Então, que te trouxe aqui?

Ao que a segunda respondeu:

- A Palavra.
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Bem hajam,

José Paula Santos

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